12 de novembro de 2013

O clássico Pirandello, por Ignacio de Loyola Brandão


Antonio Maschio e Waldimir Soares, responsáveis pelo Spazio Pirandello. FOTO: Arquivo/Estadão
O Pirandello foi um ícone da noite paulistana nos anos 1980. Era ponto de encontro de artistas e intelectuais na rua Augusta para o lado do centro. O escritor Ignacio de Loyola Brandão escreveu este belo texto no Estadão - e eu reproduzo aqui para registrar a história do bar pela pena de quem tomou umas e outras em suas mesas.

"Te encontro à noite no Pirandello", era a combinação usual. Aliás, o bar só abria à noite. Seria bar? Ou era um estado de espírito, para usar um clichê afetivo? De mítico, tornou-se lendário. Havia pessoas que ligavam: indo a São Paulo, você me leva ao Pirandello? Lugar encantado e encantador. Levar alguém significava um bom início de noite. Promissor, para quem quer que fosse, homem ou mulher, ou todas tendências, escolhas. Difícil resistir, ganhávamos mais milhas do que uma viagem ao redor de mundo nas empresas aéreas de hoje. Mas o que tinha o Pirandello de tão especial, diferente? Nada e tudo. Teve gente que entrou e dizia: mas é isso? Ao sair, reconhecia: nunca pensei que fosse tudo isso!

O Pirandello era um bar, restaurante antiquário, brechó, livraria, clube privê onde todos eram sócios, sala de visitas da minha, da sua, da casa de todos nós, ponto de encontro, lounge (para usar termo moderno), sala vip. Tinha um estilo de decoração? Tinha, não sei qual. As coisas seguiam ao sabor do que havia disponível, mudavam quadros, estatuetas, bibelôs, abajures, espelhos, lustres, vasos, ora estávamos num ambiente art-deco, ora art-nouveau, ou barroco, clean, modernista. E o que era modernista?

Tédio não havia. Nem repetição. Nem bom ou mau gosto. Havia o Pirandello onde se chegava cedo para achar lugar. Quem chegava ficava e não se via cara feia, nem garçom rondando a mesa terminado o jantar, querendo estender a conta. Ou estarei dourando a pílula? Ou, se houvesse tais inconvenientes tão normais hoje, não me lembro, não ligava, pouco me importava. Se houvesse livro de ponto, vocês veriam que foram poucas as minhas faltas. Poucas as faltas de todo mundo. Quem era todo mundo? Escritores, jornalistas, artistas, pintores, diretores de teatro e cinema, economistas, publicitários, desocupados, fazendeiros, portuários, normalistas, livreiros, guarda-livros, bancários, banqueiros, alfaiates, arquitetos, advogados, agrônomos, modelos, penetras. Descolados e caretas.

Quis sempre a mesa que dava para a escada que descia ao andar inferior (porão, ou subsolo), onde Anaelena, Cristina e Patricia abriram uma filial da Capitu, a livraria onde as coisas aconteciam. Capitu e Pirandello eram como que irmãos siameses, um extensão do outro. No salão tínhamos visão total das mesas e os espelhos auxiliavam na paquera, colocados estrategicamente, refletindo todos os ângulos, segundo a arguta redatora de publicidade Lu Franco.

Quem juntava gente como Paulo Caruso, fidelíssimo, Caio Fernando Abreu, Joyce Cavalcanti, Mario Prata, Ivan Angelo, Raduan Nassar (acreditem, eu o vi lá), Washington Olivetto, Ruth Escobar, Lina Wertmüller, Jô Soares, Fernando Henrique Cardoso, Eder Jofre, Pedro Herz, Marcos Rey, Lygia Fagundes Telles, Ricardo Carvalho, Elba Ramalho, Sandra Pera, Lennie Dale, Raul Cortez, Paulo Autran, Karin Rodrigues, Walter Hugo Khoury, Anselmo Duarte, Paulo Bonfim, Antunes Filho, Ana Maria Martins, Ricardo Ramos (um que faz muita falta), que, certa vez, levou o retrato de seu pai, Graciliano, pintado por Portinari para uma exposição e o retrato ficou meses na parede. Jantei olhando para ele muitas noites.

Luis Fernando Verissimo esteve lá quando a Capitu fez uma exposição sobre o Érico. Chegou tímido e o Maschio, louco como sempre, a falar agitado, queria porque queria um boné do Érico para pôr sobre uma máquina de escrever que estava no 'cenário'. As meninas da Capitu já tinham conseguido originais e desenhos do pai de Luis Fernando. Mas boné? Não havia. Maschio não hesitou, pegou um boné dele mesmo e disse pro mundo que era do Érico.

Quem colocava as pessoas mais diferentes num mesmo lugar, divertindo-se naquele final dos anos 70, inicio dos 80, tempo de ditadores, censores, inflação alta, overnight, em que se falava de anistia, em que dançar era ter entrado pelo cano e chocante, maneiro, porreta, joia, estou contigo e não abro eram gírias e expressões do cotidiano? Tempo das Frenéticas, do Tititi, dos Dzi Croquetes, de Porcina, Hulk, do saque de vôlei viagem às estrelas, de Malu Mader e de Malu Mulher? Uma frase de Oscar Wilde poderia estar sobre o portão de entrada: "A vida é muito importante para ser levada à sério". Ultrapassávamos o portãozinho de ferro, percorríamos um corredor de ladrilhos hidráulicos e estávamos dentro.

Quem comandava aquela nau de insensatos? Maschio e Wladimir Soares, inseparáveis como o Gordo e o Magro, Tom e Jerry, como os Três Patetas, os irmãos Marx, os policiais rodoviários Chips, o senhor Roarke (Ricardo Montalban) e o anão Tatoo (Hervé Villachaizel), a Gata e o Rato, Ziraldo e o menino maluquinho. Wladi com seu chapéu coco e seu bigodinho Carlitos, Maschio surpreendendo com fantasias diversas, mas podíamos reconhecê-lo pelo riso escancarado, debochado. Nunca o vi de cara amarrada, nem para baixo, de mau humor. Sempre alto astral, mesmo quando soube do câncer que terminaria com ele.

Desde os tempos em que fazia patês maravilhosos que os amigos consumiam e que o sustentaram por anos, Maschio iluminou a cena paulistana. Iluminou no sentido integral, à frente do Pirandello ou funcionando como um pião naquilo que hoje se chama rede social, fazendo conexões para manifestos contra o regime, a favor das Diretas Já, ou promovendo leilões beneficentes. Certa noite ali vi Ulisses Guimarães e dona Mora comendo o famoso Frango a Isadora Duncan, prato chefe, que saía da cozinha em linha de produção esmerada. Naquele tempo, apesar de tudo, acreditávamos naquele jingle de uma calça jean, a US Top: "Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada". A certa altura, já fechado o Pirandello, Maschio sobreviveu vendendo tudo o que tinha. Ou promovendo jantares inesquecíveis pelo cardápio e pela elegância da mesa. Semana passada Maschio se foi aos 66 anos. Muito cedo para morrer. Qualquer idade é cedo para morrer.

Maschio foi um dos símbolos de uma São Paulo que, como parte de um Brasil sufocado, cantava com as Frenéticas o tema da novela Dancing'Days: "Abra suas asas/ solte suas feras/ caia na gandaia/ entre nessa festa".

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