7 de novembro de 2008

Bares da saudade

Não costumo reproduzir outros autores neste espaço. As exceções são textos clássicos que falam de cultura de boteco e outros temas relacionados ao universo do blog. A crônica abaixo é um deles. É um registro de bares paulistanos das décadas 50 e 60, escrito em 1998 pelo saudoso Marcos Rey para a Vejinha. Vale a pena ler.

Falemos de bares. Respeitosamente. Com o fechamento do Hotel Jaraguá, há semanas, desapareceu também o conhecido bar do Jaraguá, tão festivo nos fins de tarde. Foi o ponto ideal, a casa do meio do caminho, entre o trabalho exaustivo e o regresso ao lar, um dos propagadores da happy hour, a hora feliz, descontraída, dos que torram os miolos nos escritórios. Grande endereço para o xampu das 6. Nunca fui de seus assíduos, mas a notícia me mereceu um minuto de silêncio. Dois, porque mesmo o álcool da nostalgia induz a exageros. Comovo-me quando bares famosos fecham as portas, trocados por um seco "aluga-se". Deveria haver uma cerimônia nessas ocasiões. Discursos, a fala do prefeito, do arcebispo, banda de música, abraços, lágrimas e o último trago.

Os bares refletem a vida da cidade, talvez mais que as igrejas, desculpem... Fixam épocas, ajudam a memorizar fatos e pessoas. A saga da cidade poderia ser contada rememorando seus bares. Que boa idéia! Dói na alma ver um capítulo todo da história paulistana se apagar, porque outro, de nossa própria existência, se apaga com ele. Já passei por onde antes havia um antigo bar, marca alegre de uma rua. Em seu lugar, abriram uma tinturaria. Quase processo o proprietário por... macular um passado histórico.

O sucesso de um bar geralmente é inexplicável, não se sabe como nem por quê. Nunca é conseqüência de uma publicidade bem bolada ou de uma decoração cheia de bossa. Nem mesmo de uma localização favorável. Embora escondidinho, numa portinha acanhada, o freguês o descobre e vota nele. A atração pode ser um tipo de bebida, a cara de um barman, o gostinho de um certo salgadinho, o jeito de servir o chope ou nada. O êxito de um bar não requer explicações. E exatamente como ninguém sabe por que veio, a freguesia um dia qualquer se vai e acabou.

O Paribar, atrás da Biblioteca Pública Municipal, foi um dos nossos bares mais freqüentados. Cheguei a acreditá-lo eterno, um postal da cidade. Lá se servia de tudo, até o papo inteligente de Sérgio Milliet, então o mais refinado dos intelectuais paulistas. Era delicioso sentar-se no Paribar e ver o povo passar. Vi, até, imaginem, duas pessoas que, soube depois, haviam morrido muito tempo antes. Uma tarde marquei lá um encontro com um amigo.

- Espere-me no Paribar às 6.

- O que houve? Esteve muitos anos no exterior?

- Por quê?

- O Paribar fechou há uns dez anos.

Meu primeiro piano-bar foi na Major Diogo, um pequeno prolongamento do Teatro Brasileiro de Comédia, o Nick-bar, título de uma peça de William Saroyan, lá apresentada. Era o reduto da sofisticada geração que se dizia existencialista, discutia Sartre e se recusava a apertar a mão dos adeptos da música caipira. Os artistas de sucesso e jovens intelectuais diziam presente todas as noites. Os cronistas sociais passavam por lá. Estar no Nick podia ser notícia. Com um pouco de sorte sentava-se na mesa ao lado de Tônia Carrero, Maria Della Costa e Cacilda Becker. Vizinhos da fama.

O tom da geração, o estar na moda, ser up to date, era ali, no Nick, onde muita gente tomou uísque pela primeira vez, curtiu a dor-de-cotovelo inaugural e aprendeu que era feio dormir cedo. Devia ser tombado e seus fregueses transformados em figuras de um alegre museu de cera. Mas, atraídos pela imprensa e por um delicioso samba-canção, homenagem de Dick Farney ao bar, foram chegando vândalos, hunos, godos e visigodos. Tomado pelos bárbaros, o vaidoso Nick, dando-lhes uma banana, fechou as portas.

Pouco freqüentei o histórico Bar Viaduto, na Rua Direita, com sua música ao vivo, mas fui visto muitas vezes na Vienense, na Barão de Itapetininga. Confeitaria e bar, de discreta movimentação vespertina, segundo o boêmio Cláudio Curimbaba disfarçava com seus ingênuos violinos, e protetores bancos altos, encontros pecaminosos da tarde, entre o médico e a enfermeira, o professor e a aluna, o juiz e a advogada. Talvez inverdades, mas criava certo clima.

Podia falar também no Mirim e no Lacta, ambos na São Luís, trampolins para o mergulho noturno, no chiquérrimo Arpége, no saudoso Bar do Museu, que se eu não lembrasse ninguém me perdoaria, no Clube dos Artistas, no Barcarola, da Rádio América, o único bar que possuía uma estação de rádio, estabelecimentos onde essa mutante São Paulo já mostrou sua cara. Hoje não existem mais, foram vendidos, desocupados, alugados, transformados, abandonados, derrubados.

Orai por eles.

Um comentário:

Anônimo disse...

Edu, ótima crônica. Parabéns por publicá-la. Sou sempre curioso por esse tipo de texto, seu desenvolvimento, sua aparente irresponsabilidade... tem até tom de boteco, não? Abraços